O Ministério Público entra com ação contra o leilão de Belo Monte, e o presidente Lula diz que a usina será feita de qualquer maneira. O TCU aprova relatório mostrando a distribuição desequilibrada de recursos públicos, e o presidente diz que é leviandade. A Justiça Eleitoral multa o presidente, e ele diz: “Não podemos ficar subordinados ao que um juiz diz que podemos ou não.”
Tudo isso num dia. O chefe do Executivo investe contra o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e a Justiça Eleitoral, num ataque serial em apenas 24 horas. A República pressupõe independência dos poderes, portanto, a vontade do Executivo não é soberana; ela é contida pelo Judiciário, ao qual se recorre para revisões das decisões. O TCU é órgão do Legislativo com pessoas nomeadas pelo governo para fiscalizar o uso do dinheiro público. O Ministério Público é independente e é função dele cuidar da legalidade da gestão pública. Enfim, todos os órgãos estão cumprido seus papéis institucionais. Mas isso tem provocado reações furiosas do presidente da República. Se fosse um cidadão comum fazendo essas declarações, seria um equívoco, sendo o presidente, com os poderes que tem, é perigoso.
Como remédio para os limites impostos pela legislação eleitoral, ele propõe uma reforma política, pela qual diz que vai lutar, quando estiver fora do governo. Não é para relaxar as regras de uso da máquina que a reforma foi pensada, mas é bom lembrar que como chefe do Executivo, com sua bancada majoritária, ele tinha mais chances de fazer a reforma do que quando for ex-presidente.
Sobre Belo Monte, recaem muitas dúvidas. De toda ordem: financeira, ambiental, de engenharia. Isso é que está assustando investidores.
— Há um canal gigantesco que precisa ser feito, cujo estudo nunca foi feito adequadamente. Não se sabe se esse terreno é 90% pedra e 10% terra, ou o contrário. O custo do canal vai depender da natureza desse terreno — diz Mario Veiga, presidente da PSR.
Portanto, o que assusta os investidores são dúvidas razoáveis. O pesquisador Francisco Hernandez, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, coordenou um painel com 40 especialistas para estudar a obra. Ele chegou à conclusão de que o projeto não deveria ser feito, por ser ruim e caro. Além disso, a região é considerada de “biodiversidade extrema.”
— Normalmente, o impacto ambiental das hidrelétricas acontece com os alagamentos. Em Belo Monte, o impacto será duplo: além do alagamento, será preciso secar outra região, porque o rio terá que ser desviado. Isso nunca aconteceu no país e torna o projeto mais arriscado.
A ideia de construir hidrelétricas no Rio Xingu vem dos anos 80. No início, imaginava-se a construção de seis a sete usinas, mas a pressão de ambientalistas, índios e técnicos fez com que os projetos fossem abandonados, restando apenas o de Belo Monte.
Desta vez, as autoridades ambientais disseram que fizeram exigências que a tornariam realizável. Mas as incertezas continuam. A usina será feita em área indígena, que exige legislação própria; continua a haver dúvidas so$impactos graves; o leilão só pode ser feito depois da Licença de Instalação e só há a Licença Prévia. O Ministério Público está apontando uma série de descumprimentos de exigências a serem atendidas antes da licitação. Mesmo assim, o governo está dizendo que ela será feita. Só se reeditar o bordão “na lei ou na marra”, de um triste período do Brasil. A única forma de se fazer qualquer obra no estado de direito é respeitando todos os constrangimentos previstos na lei, todos os limites exercidos pela Justiça. Na marra, não dá.
Do ponto de vista econômico-financeiro, é uma temeridade iniciar qualquer obra apenas porque ela é um ícone do PAC, que é o carro-chefe da candidata do governo. A controversa usina de Belo Monte tem assustadores pontos obscuros do ponto de vista da viabilidade financeira também, além de ambiental. O governo está dizendo que se não houver investidor privado fará com empresas estatais ou com fundos de estatais. Isso pode acabar gerando mais um rombo para o país enfrentar no futuro.
Belo Monte tem sido apresentada como a terceira maior hidrelétrica do mundo, com capacidade de produzir 11 mil MW de energia, mas isso é o pico. Na média, a usina produziria 4,2 mil MW. Hernandez explica que a flutuação das águas do rio é enorme: no inverno, a vazão é 40 vezes maior que no verão. No período de baixa, será impossível ligar as turbinas. Com isso, o potencial energético do rio será de apenas 39%, um dos mais baixos entre as hidrelétricas do país.
O pesquisador diz que a obra exigirá a construção de grandes represamentos, e isso contraria a recomendação da Comissão Mundial de Barragens (CMB), que chegou à conclusão, em 2002, de que quanto menor, melhor:
— Na nossa avaliação, Belo Monte é apenas um convite para novos barramentos. Depois que a usina ficar pronta, se chegará à conclusão de que novas barragens serão necessárias para aumentar a eficiência. Com isso, novas obras serão feitas. Esse projeto é uma reedição da ideia inicial, dos anos 80, só que começando pelo fim.
O projeto é distante do centro consumidor, exigirá obra de grande envergadura, desvio do rio. Não pode ser iniciada apressadamente apenas para constar das obras a serem brandidas nos palanques. Pela nota do Ministério Público, alertas de técnicos do próprio governo foram ignorados, na pressa em se conceder a licença prévia para a construção.
Em Belo Monte, se prepara para fazer concessões maiores para atrair investidores a qualquer preço e iniciar a obra em qualquer contexto jurídico, passando por cima de quaisquer dúvidas ambientais. Isso porque, como disse o presidente: “Belo Monte será construída”. Talvez seja mesmo, mas antes será preciso cumprir a lei. Na marra, não será possível.